Pois bem, comigo não foi diferente. Como tantos outros não pude deixar de lutar contra uma vida que insiste em contrariar todas as nossas expectativas, todos os nossos sonhos e anseios, mesmo se os mesmos se resumem a algo tão simples como uma casa à qual podemos chamar nossa, um emprego e algum dinheiro no bolso para gerir com saber e querer. Também eu sou professor, de ciências, e quando conto a quem comigo trabalha existirem por terras de Portugal dezenas de milhar de professores no desemprego, ninguém me acredita. Não quero com isto dizer ser a Inglaterra uma qualquer terra prometida, porque não só não o é como, caso esta aposta não resulte, tenho toda a certeza de amanhã ser mais um dia onde duas pernas e dois braços persistirão em animar o meu corpo e esta vontade. Importante é acreditar. Também eu vivi o desemprego e ainda hoje carrego comigo esse sentimento de culpa de quem acha ser nossa a responsabilidade de um dia encarar tal situação. Mas não é, a culpa não é nossa, e num repente somos mais um desses casos que dão razão à psicologia. Porque crescemos condicionados à função de produzir.
Estive um ano sem ser colocado e cedo percebi não haver lugar para mim no universo tão pequeno que é Portugal, um País de cunhas, cunhados e conhecidos onde não se valoriza o mérito pessoal e onde a oportunidade é para quem já a tem, e não para quem a queria. Mas emigrar foi sempre a última opção. Não há alegria em deixar para trás toda uma família e os amigos que se criaram durante uma vida. E por tal, e tentando fugir ao óbvio, decidi enveredar por outro curso e outra área: a área da enfermagem. Afinal, ainda vivemos num país onde a opinião geral é de que "o importante é ter saúdinha". E conquanto haja saúdinha para tratar, esperava eu, como enfermeiro, não ter de emigrar. O resultado prático foi ter de desistir do curso ao fim de dois anos e meio, porque a exigência do mesmo reprova por um ano quem chumba a uma só disciplina de estágio, e a vida não nos dá espaço para andar por aqui a perder anos de vida, não quando já me crescem os cabelos brancos, e não numa sociedade ansiosa por drenar a juventude que nos vive nos braços. Desisti de enfermagem numa sexta-feira e comecei a preparar a partida no sábado, uma partida que levaria ainda um ano e meio a concretizar. Na quarta-feira seguinte estava a trabalhar no buraco dos licenciados e dos desgraçados: um call-centre da TV Cabo. A experiência sui generis de se ser insultado ao telefone oito horas por dia só não deitou por terra toda a pouca auto-estima que ainda me sobrava porque pelo meio fiz a viagem tão prometida à minha namorada (fomos à Suécia) e nunca, mas mesmo nunca, deixei de procurar um emprego. Graças à internet (na Internet we trust) coleccionei listas formidáveis de contactos electrónicos de escolas públicas, escolas particulares, centros de formação, jornais e revistas, estágios profissionalizantes e estágios não remunerados, até finalmente, oito meses volvidos num rolo de carne em sangue, poder saltar de um buraco na direcção de outro: os centros de estudo. Se por um lado fugi ao insulto, por outro a exploração mercantil a que somos sujeitos é, em definitivo, um insulto em si. Mesmo tendo em conta o facto de ter feito algum dinheiro e agora, olhando para Portugal, saber haver professores a receber cento e cinquenta euros a troco de meio horário de trabalho (o qual é, por norma, pago a quadriplicar). Como não podia deixar de ser, continuei à procura de emprego. pelo caminho soube haver por terras de Inglaterra uma grande falta de professores de ciências. Meu dito, meus amigos, meu feito. Estabeleci os contactos e tratei das qualificações. Estávamos no início de 2007, mês de Janeiro, e ao fim da terceira semana de Fevereiro já tinha o especial certificado na caixa do correio. Estava tudo preparado para partir para Inglaterra! No entanto, faltava o mais difícil: partir. Essa fase, que foi a última, ainda me levou sete meses, só tendo aqui chegado corria o ano no mês de Setembro. Para trás deixei toda as lágrimas em pequenos saquinhos debaixo das asas do avião, e comigo trouxe a certeza cega de nunca mais voltar a um país que, lentamente, nos atira para longe de todos a quantos queremos. Porque não há alternativas. Ou isso, ou o a resignação de uma vida parva e pequena, mesquinha, onde "o que importa é que haja saúdinha...", dia após dia, até nada mais haver senão uma mão de terra onde o licenciado acaba por se conhecer a plantar uma batata e uma couvinha porque a auto-subsistência é o futuro cada vez mais presente. Ao fim de três semanas estava a trabalhar, e hoje estou numa escola de ensino especial em West Ham, Londres, onde me pagam e onde recebo, onde trabalho e onde aprendo. Pago as minhas contas e não sou mais um filho de Portugal à procura de contrariar esse epíteto de "geração rasca", mesmo sendo eu, à data, um dos melhores alunos da escola. Não, isso não conta. O que conta é a batalha geracional, e essa também não escolhe prisioneiros.
Os filhos de Abril são mais que mil, e gritam ao cair.
Daqui por uma semana estarei a viver com a minha namorada por terras de Londres, à procura de cumprir a promessa de não mais nos separarmos. O que acontecer daqui em diante é a vida, a mesma que nos é negada porque vedada, em terras de Portugal. As saudades são muitas, mas nada há que me espere no regresso a casa senão um princípio de fome. Poucos amigos ainda fiz e a maior parte do meu tempo tem sido dedicada ao trabalho, mas aos poucos, creio, uma vida hei-de construir e o futuro está ali à porta, à espera do meu consentir, para que eu o deixe entrar dentro da sala-de-aula, de mala às costas em direcção à carteira da frente, onde se senta e onde abre o livro para mais um dia de aulas.
João André Costa