quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A vingança do anarquista

A vingança do anarquista

Se as pessoas sentem que dão — trabalho, estudo, impostos — e não recebem nada em troca, o governo está a trabalhar para a sua deslegitimação.

Aqui há tempos havia um enigma. Como podiam os mercados deixar a Bélgica em paz quando este país tinha um défice considerável, uma dívida pública maior do que a portuguesa e, ainda por cima, estava sem governo? Entretanto os mercados abocanharam a Irlanda e Portugal, deixaram a Itália em apuros, ameaçaram a Espanha e mostram-se capazes de rebaixar a França. E continuaram a não incomodar a Bélgica. Porquê? Bem, — como explica John Lanchester num artigo da última London Review of Books — a economia belga é das que mais cresceu na zona euro nos últimos tempos, sete vezes mais do que a economia alemã. E isto apesar de estar há dezasseis meses sem governo.

Ou melhor, corrijam essa frase. Não é “apesar” de estar sem governo. É graças — note-se, graças — a estar sem governo. Sem governo, nos tempos que correm, significa sem austeridade. Não há ninguém para implementar cortes na Bélgica, pois o governo de gestão não o pode fazer. Logo, o orçamento de há dois anos continua a aplicar-se automaticamente, o que dá uma almofada de ar à economia belga. Sem o choque contracionário que tem atacado as nossas economias da austeridade, a economia belga cresce de forma mais saudável, e ajudará a diminuir o défice e a pagar a dívida.

A Bélgica tornou-se assim num inesperado caso de estudo para a teoria anarquista. Começou por provar que era possível um país desenvolvido sobreviver sem governo. Agora sugere que é possível viver melhor sem ele.
Isto é mais do que uma curiosidade.

Vejamos a coisa sob outro prisma. Há quanto tempo não se ouve um governo ocidental — europeu ou norte-americano — dar uma boa notícia? Se olharmos para os últimos dez anos, os governos têm servido essencialmente para duas coisas: dizer-nos que devemos ter medo do terrorismo, na primeira metade da década; e, na segunda, dizer-nos que vão cortar nos apoios sociais.

Isto não foi sempre assim. A seguir à IIa. Guerra Mundial o governo dos EUA abriu as portas da Universidade a centenas de milhares de soldados — além de ter feito o Plano Marshall na Europa onde, nos anos 60, os governos inventaram o modelo social europeu. Até os governos portugueses, a seguir ao 25 de abril, levaram a cabo um processo de expansão social e inclusão política inédita no país.

No nosso século XXI isto acabou. Enquanto o Brasil fez os programas “Bolsa-Família” e “Fome Zero”, e a China investe em ciência e nas universidades mais do que todo o orçamento da UE, os nossos governos competem para ver quem é mais austero, e nem sequer pensam em ter uma visão mobilizadora para oferecer às suas populações.

Ora, os governos não “oferecem” desenvolvimento às pessoas; os governos, no seu melhor, reorganizam e devolvem às pessoas a força que a sociedade já tem. Se as pessoas sentem que dão — trabalho, estudo, impostos — e não recebem nada em troca, o governo está a trabalhar para a sua deslegitimação.

No fim do século XIX, isto foi também assim. As pessoas viam que o governo só tinha para lhes dar repressão ou austeridade. E olhavam para a indústria, e viam que os seus patrões só tinham para lhes dar austeridade e repressão. Os patrões e o governo tinham para lhes dar a mesma coisa, pois eram basicamente as mesmas pessoas. Não por acaso, foi a época áurea do anarquismo, um movimento que era socialista (contra os patrões) e libertário (contra o governo).

Estamos hoje numa situação semelhante. Nenhum boa ideia sai dos nossos governos. E as pessoas começam a perguntar-se para que servem eles.

ruitavares.net/blog

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A política morreu porquê?


No passado dia 29/12/2011, Ricardo Araújo Pereira fez parte do terceiro painel do ciclo «Desconferências», subordinado ao tema «O Fim da Crise», no Teatro S. Luiz, em Lisboa. Texto da sua intervenção (ou parte dele), recebido por mail:

A política morreu porquê?

Várias hipóteses:

1. A primeira é a de que morreu porque deixou de ser necessária. O sonho dos nossos antepassados cumpriu-se. Os portugueses vivem hoje num país nórdico: pagamos impostos como no Norte da Europa e temos a qualidade de vida do Norte de África.

Somos um País onde nem Américo Amorim se acha rico. E porquê? Porque somos dez milhões de milionários. Temos a vida que os milionários têm. Cada um de nós tem um banco e uma ilha, é certo que é o mesmo banco e a mesma ilha, que é o BPN e a Madeira, mas todos os contribuintes são proprietários de um bocadinho.

2. A outra hipótese é: não há política porque só há economia. E enfim, a teoria medieval concebia apenas duas formas de governo: na primeira, o fluxo do poder era ascendente. O poder emanava do povo e o povo delegava nos seus representantes. Na outra forma de governo, o poder fazia o percurso inverso: emanava do príncipe e o príncipe delegava nas outras figuras do Estado. O nosso modelo é um híbrido, no sentido em que do povo emana o poder para eleger os representantes na figura de pessoas como Miguel Relvas e o seu vice-primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. E há depois o príncipe, que é a troika, do qual também emana poder. E a troika delegou o poder nas mesmas pessoas. Portanto, há um engarrafamento de poder nesta gente e, como é evidente, o poder que vem de cima é mais forte do que aquele que nós mandámos para lá e é isso. O poder deles tem mais força. E o nosso... voltou para trás.

Há problemas no facto de a política ter morrido:

1. O primeiro é: a política percebe-se. Já a economia é muito mais difícil de compreender. Eles simplificam, isso é verdade. Por exemplo, primeiro os mercados começaram a dizer que nós éramos PIGS: Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha. PIGS, porcos! Depois disseram: Portugal é lixo. É uma metáfora muito repetitiva, mas é clara. Facilita a compreensão. Reparem, eu não sei ao certo o que é o "subprime", nem o que são "hedge funds", mas quando uma pessoa me diz: "tu és lixo", eu percebo do que está a falar. Eu sei exactamente. Claro que é triste esta liberdade vocabular não ser permitida a quem está em baixo: a gente vê uma manchete a dizer: "mercados consideram que Portugal é lixo", mas é impensável, na página seguinte, ter: "Portugal vai tentar renegociar a dívida com os chulos". Isso não nos é permitido. Eles têm o capital financeiro e o capital semântico, tudo o que é capital, açambarcam, isto torna a vida difícil.


Mas também há vantagens no facto da política ter morrido:

1. Saiu agora um estudo que diz: "Portugal é uma democracia com falhas". Em primeiro lugar, é importante elogiar um grupo de cientistas políticos que é tão eficaz que consegue olhar para Portugal e ver uma democracia com algumas falhas, e não uma falha com alguma democracia. É inquietante sermos uma democracia com falhas porque, até agora, éramos uma democracia sem falhas. Nós éramos felizes e não sabíamos.

2. Depois, levanta-se outra questão, que é saber se se pode dizer democracia com falhas. Eu estava convencido que a democracia ou é ou não é, no sentido em que também não se pode dizer "ele é ligeiramente pedófilo, ou ele estava mais ou menos morto". Ou está morto ou não está! O facto de sermos uma democracia com falhas põe outro problema mais inquietante: a partir de quando é que uma democracia com falhas passa a ser uma ditadura com qualidades?

3. Outras vantagens: assim que Passos Coelho foi eleito, nós deparámo-nos com um problema interessante: Passos Coelho nunca fez nada na vida a não ser política, JSD, por aí fora. O homem licenciou-se com 37 anos, esteve ocupado a tratar de coisas políticas. No entanto, não tem experiência política nenhuma, o que é difícil para um homem que só fez política na vida. Lá está, ele teve empregos, mas só em empresas administradas pelo Ângelo Correia. O primeiro emprego que teve que não foi arranjado pelo Ângelo Correio, foi este, que nós lhe arranjámos. Passos Coelho acaba por ser uma inspiração para todos os desempregados. É possível, sem grande currículo, com alguma sorte, arranjar um emprego, desde que, lá está, o outro candidato seja... o Sócrates. Para quem tem pouca experiência, governar com a troika é como andar de bicicleta com rodinhas e, portanto, tem esse lado vantajoso.

4. Paradoxalmente, o nosso voto tornou-se mais importante. Antigamente votávamos nas eleições nacionais portuguesas, hoje votamos nas regionais alemãs.

5. E é excelente por questões de respeito. Por causa da senhora Merkel. E digo senhora Merkel com propriedade. Não dizemos o senhor Sarkozy ou o senhor Obama. Nunca. Mas senhora Merkel dizemos. E temos em português aquela expressão, quando nos referimos ao passado: "o tempo da outra senhora". Este é o tempo desta senhora. Saiu uma senhora e entrou outra senhora.

Queria acabar dizendo que há esperança para nós. Porque a política parece ter morrido, mas ainda há réstias de política. Vou dar dois casos:

1. O assassinato político voltou e isso significa que há política. Em 1908 mataram D. Carlos. Em 2011 foi abatido a tiro, também por razões políticas, o pórtico da A22. Há qualquer coisa no início dos séculos que excita o gatilho dos conspiradores. E alguém leva um tiro. Enfim, podiam ter morto o rei, mas entre D. Duarte e o pórtico, os atiradores optaram, e bem a meu ver, pelo que politicamente era mais relevante. E deram uma chumbada na portagem.
2. A segunda razão pela qual devemos ter esperança é este incentivo à emigração constante, que é de facto uma medida política. Geralmente, o programa xenófobo, que é vasto e rico, consubstancia-se na frase "vai para a tua terra", dita aos imigrantes. O nosso Governo tem este programa ligeiramente diferente que é: "sai da tua terra!", dito aos nativos. Fica difícil saber para quem é esta terra afinal. Eu quero sugerir o Brasil como um destino interessante para nós. O Brasil é uma terra de oportunidades e possibilidades de riqueza, como demonstra o caso inspirador do Duarte Lima.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Anonymous

por Pedro Viana


Nathan Schneider aborda neste texto as similitudes ideológicas entre o colectivo Anonymous e o movimento Occupy. Tal como já tinha referido aqui, ambos são sintoma de uma mudança fundamental na ideologia prevalecente, sobretudo entre as gerações mais recentes. Depois de, durante várias décadas, a ideia de comum e colectivo ter perdido força, em detrimento dum individualismo egoísta, exacerbado e exibicionista, assistimos ao seu renascimento por via das possibilidades colaborativas abertas pelo desenvolvimento digital. Não estamos, no entanto, a voltar às ideologias colectivistas dominantes durante grande parte do século passado, que advogavam a manutenção (mesmo que por vezes apenas "transitoriamente") de estruturas hierárquicas de Poder. Como Nathan Schneider descreve neste seu outro texto,

"(...)in the words of Occupy Wall Street’s Principles of Solidarity, the basic unit of political life is not the ballot box but “autonomous political beings engaging in direct and transparent participatory democracy.” Though they might be wired to the teeth, the political beings of Planet Occupy carry out their democracy face to face, in well-coordinated small groups that operate by consensus. It’s “participatory as opposed to partisan,” adds the Statement of Autonomy, suggesting that the aim on Planet Occupy is for all voices to be heard, rather than for one party to prevail over others. Those with “inherent privilege” defer whenever possible to others. The consolidation of power is discouraged, and resisted when necessary.(...)"

Não é assim surpreendente alguma dificuldade de comunicação e entendimento entre as novas estruturas em desenvolvimento, e os tradicionais colectivos de resistência à ordem prevalecente, como partidos e sindicatos. De entre os novos colectivos, Anonymous destingue-se pela sua radicalidade (não-)organizativa, e pela sua capacidade para minar a resposta repressiva do sistema, destabilizando as suas linhas de comunicação e tornando transparente o seu funcionamento. Gabriella Coleman publicou recentemente um interessantíssimo texto sobre o colectivo Anonymous, do qual destaco o parágrafo final:

"One of Occupy Wall Street’s most powerful gestures has been to position its radically democratic decision-making process, represented by the agora of the General Assembly, against the reining corporate kleptocracy. Though this brand of horizontalism has a rich history with many roots, there is a particularly strong resonance in the relationship between the formal structure and the political aspirations of Anonymous. And Anonymous is organized not only around a radical democratic (at times chaotic and anarchic) structure but also around the very concept of anonymity, here constituted as collectivity. The accumulation of too much power—especially in a single point in (virtual) space—and prestige is not only taboo but functionally very difficult. The lasting effect of Anonymous may have as much to do with facilitating alternative practices of sociality—upending the ideological divide between individualism and collectivism—as with attacks on monolithic banks and sleazy security firms. This is the nature of the threat posed by Anonymous, and it is aptly symbolized by the Guy Fawkes mask: a caricature of the face of a sixteenth-century British failed regicide and the namesake of a holiday marked by bonfires celebrating the preservation of the monarchy; used by a dystopian comic book and then Hollywood film as the visage of anarchist terrorism and now turned into an icon of resistance—everything and nothing at once."